por Josias Pires
Um filme de estranhamento, reconhecimento e transformação.
A comunicação social é tema tão relevante no Brasil quanto a reforma agrária e a justiça social. O personagem deste filme é um comunicador popular, um poeta de rua, um propagandista que põe o dedo da ferida no campo da comunicação e expõe a hipocrisia dos que pousam de vestais em público e são venais na vida privada.
Para começo de conversa, é irrelevante o andar dizendo que Cuíca de Santo Amaro não merece ser personagem de livros e filmes. Quanta maldade com a memória de um dos mais instigantes trovadores da Bahia. Cuíca merece e tem o direito de ter a sua memória registrada como nós temos o direito de fazer este trabalho e o público tem o direito de conhecer essa história. A violência contra rimas imperfeitas e pés-quebrados tenta esconder a força da atuação de um poeta singular, corajoso, que faz o bom e o mal combate, que acende uma vela para deus e outra para o diabo; que enfrenta e se alia com a polícia e se vale da retaguarda que consegue reunir para proteger-se no mundo cão em que vivia.
“Muita gente tem vontade / que a polícia me encane / acho eu muito possível / que esta gente se engane / pois estou ainda mais forte / e tão firme como arame”.
Quem faz críticas fáceis e formalistas contra Cuíca pouco compreende que esta é uma personagem de mil faces. Andarilho das encruzilhadas, dos mercados e das feiras. O rei do deboche, do riso solto. Assumia os seus preconceitos, os vícios e defeitos e anunciava as virtudes, a maior delas: dizer a verdade. Cuíca de Santo Amaro é um personagem que traz o que Muniz Sodré chama de “rito de veridicção”, ele expõe verdades não-ditas, para não dizer malditas, incômodas e faz isto com o espírito do grotesco, do grotesco crítico, antecipatório, porém diferente do grotesco mundo cão da TV.
Amado, temido e odiado na sua época – amado pelo povo, temido e odiado por tubarões e por quem tinha algo a esconder, Cuíca farejava e difundia fatos sempre presentes na história da humanidade: a própria miséria humana. “É desastre, é crime, é inundação, é tubarão explorando o povo, é galego sacaneando a população, é mulher xumbregando ... o assunto veio, o folheto sai”, dizia. Era um Nelson Rodrigues popular. Um Gregório de Mattos sem gramática. Uma síntese intuitiva, um tributário dos epigramistas, dos humoristas e caricaturistas.
E é incrível constatar que ainda hoje incomoda. Ao ser anunciada a realização do filme através do blog do Galinho e de uma reportagem do jornal A Tarde, esses textos foram deslocados para um site/blog sobre Cordel e surgiram dezenas de comentários descontentes – para dizer o mínimo – com o fato de que está sendo feito um filme sobre Cuíca. Encontramos fontes potenciais do filme, que viveram experiências de compra e venda de informações com Cuíca e que se recusam a falar. Sejamos sinceros: vamos ver e compreender as coisas de frente, conhecendo-as no mais perto da sua inteireza, fugindo dos patrulhamentos, dos julgamentos morais.
Acredito que o debate pode ser melhor focado. A escolha em fazer um filme sobre Cuíca de Santo Amaro não surgiu em detrimento de fazer um filme sobre Leandro Gomes de Barros. Não sei quem inventou esta história de que um foi preterido pelo outro. É evidente que, se puder reunir as condições necessárias farei com o maior prazer um filme sobre Leandro Gomes de Barros e sobre outros cordelistas clássicos, os quais admiro. A escolha por Cuíca deu-se por outras razões. O arquétipo de Cuíca sugere questões importantes para o mundo hoje, para o Brasil e para a Bahia. E é bom que se diga logo: Cuíca não fazia cordel. Fazia “livrinhos de histórias”, como os folhetos eram chamados na sua época. A cobrança formalista sobre Cuíca desmerece a grandeza da sua poética oral. Cuíca não precisava nem escrever, bastava falar, lembra Muniz Sodré.
Evidentemente a poética de Cuíca não presta reverência ao acadêmico, está longe do cordel canônico. A sua poesia estava na Voz, no corpo e não no papel somente. Na rua, declamando, conversando, como na canção as entonações cobrem os espaços que a métrica impressa exige. Na rua como na música a métrica é outra. Autor de poesias-reportagem, de poemas-piadas reivindicados por Oswald de Andrade, Cuíca foi um modernizador da linguagem sem se filiar a nenhuma escola. É maldade reduzi-lo a uma nulidade poética.
“Me parece que os jornais / Da Bahia são comprados / Pois fatos palpitantes / Ficam na redação / Eternamente arquivados. // Digo eu esta verdade / Porque isto é o meu dever / Coisas sem importância / Os jornais sabem escrever / Porém o que interessa / Fica o povo sem saber”. Cuíca era o autor dos livrinhos de histórias que mais vendia na Bahia, sobretudo quando tratavam-se de escândalos.
Além disso, mais do que poeta, Cuíca insistia em dizer que ele era propagandista. Um homem da comunicação. Nada desprezível. Estão muito enganados os que condenam Cuíca pois nada sabem sobre os múltiplos significados da sua atuação. Marginal, sim, porém herói – estava escrito ... e deve cair por terra a tese de que ele jamais poderia valer um livro ou um filme.
Quando nos aproximamos do personagem damos de cara com um tipo altamente complexo, um esteta das partes baixas, como assinala Muniz Sodré, na linha de Bakhtin e dos estudos sobre Rabelais. Esteta das partes baixas, poeta dos porões que espelha e distorce a vida dos becos, dos salões e das alcovas. Os amaldiçoados métodos de chantagem e extorsão atribuídos a Cuíca eram os mesmos utilizados pela imprensa da época. Querer condenar Cuíca e absolver Assis Chateubriand é a manutenção da mesma hipocrisia que Cuíca combatia. O buraco é mais embaixo. Cuíca põe ainda hoje no olho da rua a mesma questão: a venalidade de profissionais, radialistas, jornalistas e de proprietários de veículos de comunicação, que são subornados e pousam de vestais. Cuíca levanta o véu, desvela a cena e é injusto condena-lo. Como poucos naquele momento ele dava visibilidade ao que estava escondido, o fora de cena, o obsceno.
Sem essa de que a sua verve não serve. Calar Cuíca é uma opinião de cortesãos – estes pensam que o personagem indelicado deve ser silenciado. A tentativa de black-out na memória, a sustentação desse ponto de vista, de que Cuíca não merece ser assunto de filme e livro é uma fuga da responsabilidade de enfrentar e assumir as histórias limites. Cuíca, um pequeno Exu, vivia exatamente nas fronteiras do decente e do indecente, ultrapassando os limites, gritando verdades que doíam.
Cuíca de Santo Amaro é um personagem que nos permite por o dedo na ferida neste campo da comunicação. Afinal, foi ele quem teve a coragem, como um pequeno Davi, de encarar e expor podres do sistema de chantagens e extorsões na grande mídia, usual em todo o mundo e em todos os tempos. Cuíca defendeu o seu quinhão com as armas que conseguia reunir. Mas ao contrário de outros jornalistas e radialistas, que recebem suborno e pousam de vestais, Cuíca condena esta hipocrisia, assumindo muitas e muitas vezes a sua produção poética como “matérias pagas”, e não se escondendo atrás de anonimatos.
Ao contrário, Ele, O Tal, um boca de brasa saía todos os dias às ruas e dava os nomes aos bois. Defendia o povo contra os tubarões marreteiros e anunciava o seu compromisso com a verdade. Contra a carestia, a falta de energia, de carne e de pão. A voz do povo. Uma voz desabusada. Porém, quem não quisesse ter o nome sujo exposto em praça pública, que pagasse para que a informação deixasse de circular. Um tipo perigoso. Um poeta picaresco. Macunaímico. Expressão mítica de um herói popular brasileiro.
Um filme buscando a perspectiva popular. O ambiente popular. A paisagem humana. Que já foi captada um dia por Jorge Amado, sim, vista através da poesia e da experiência de personagens do filme: Walmir Lima, Sinézio Alves, Rodolfo Coelho Cavalcante. Jacaré. Chocolate. Miss Piedade, Pureza – a Mulher de Roxo. Imagens e vozes da cidade. Imagens e Vozes do filme. Polifonia. E a voz de Cuíca de Santo Amaro.
Dialogando com e sobre Cuíca de Santo Amaro. Os títulos, as capas, os textos das contracapas, as paródias de músicas de sucesso da época, os versos desabusados. A performance. A teatralidade, a sagacidade, a sacanagem. O comunicador. O propagandista. As repercussões daquela performance – irradiações simbólicas e materiais, corporais. As memórias. “O povo gosta de sacanagem”, ele diz.
Memórias de uma cidade – fiapos de lembranças daquela cidade que seria idílica para alguns, a Corte para uns privilegiados e o ambiente da dor e da alegria para quase todos. A poesia de Cuíca de Santo Amaro, livre, insubmissa quando ele assim o quis. Poesia de maldição e louvação.
Cuíca de Santo Amaro é um arauto. O anunciador. O anjo torto, da boca torta, poeta livre desancando a hipocrisia. A vida privada nas ruas. A verdade que sai das bocas dos becos, dos subterrâneos. Os ricos já não podem continuar impunes. Ao lado deles ainda está a polícia e o Estado. Mas a voz das ruas agora tem Cuíca de Santo Amaro. O Trovador Repórter. Ele, O Tal!
Uma voz que reverbera por uma cidade que já não é a mesma. A cidade negra tropical afrancesada, depois da segunda guerra passou para a esfera da influência norte-americana. Tudo começou a mudar um pouco mais rápido. Até que o Carnaval saiu dos clubes para as ruas atiçadas pelos trios elétricos. Mudam as virtudes e os vícios. A decadência do mundo da Rampa do antigo Mercado Modelo e da rua Chile chiquérrima. Mas uma cidade que ainda tem a poesia, a música, a dança e o imaginário popular espraiando-se, cada vez mais, por todos os lugares.
E para botar mais lenha na fogueira devo finalizar dizendo que os baianos não costumam aceitar facilmente críticas a Jorge Amado, sobretudo no seguinte aspecto: desde quando ser personagem de Jorge Amado constitui um demérito do sujeito? Os romances de Jorge estão repletos de personagens populares de Salvador, do Recôncavo e do Sul da Bahia, todos sabem disso. E todos aqueles que estão imortalizados nos livros de Jorge reconhecem a grandeza do gesto. Cuíca aparece como personagem em quatro livros de Jorge, na peça de Dias Gomes, O Pagador de Promessas; e em livros de Orígenes Lessa[1].