domingo, 29 de março de 2009

Filmefobia, fobia social e crimes de bagatelas


Por Josias Pires



Antes de assistir a Filmefobia, de Kiko Goifman, exibido quinta-feira passada (dia 26/03) no Panorama Internacional Coisa de Cinema fui acompanhar uma mesa de debates sobre o filme para ouvir o roteirista Hilton Lacerda (roteirista também de Baile Perfumado, Amarelo Manga, Árido Movie, Cartola, dentre outros) e o crítico de cinema Jean-Claude Bernadet (foto), que é ator no Filmefobia, faz o papel de um diretor de filmes que está buscando a imagem verdadeira.

Jean-Claude inverteu a lógica convencional da mesa de debates e, ao invés de falar previamente sobre o filme que só assistiríamos à noite, propôs um jogo: pediu para a platéia expor o filme que cada um tem na cabeça, um filme que imaginamos e pediu mais: que desconsiderássemos tudo aquilo publicado na imprensa e nos blogs, pois todos esses textos são promocionais que interferem e tendem a condicionar a recepção dos filmes, induzindo o olhar do espectador.

A proposta é outra: desconstruir o olhar, ver o filme com olhos novos, livres de pré conceitos.

Depois de ver Filmefobia pude compreender melhor a proposta do crítico-ator no debate.

Ao pretender não ser um filme de tese nem querer esgotar o debate de um tema Filmefobia libera o espectador de uma mensagem dominante.

Cada um faz o seu próprio filme na interação com a obra, no corpo-a-corpo. Desde o começo somos submetidos a sessões de tortura, vemos atores/atrizes submetidos a um tremendo estresse, em sucessivos testes para produzir imagens supostamente verdadeiras. E todo o “processo” é “registrado” em making-off pelo diretor Kiko Goifman, como se fosse um “documentário fictício”. Os dois diretores debatem o sentido e os resultados da pesquisa, da fobia e das respostas dadas pelos atores para cada experiência.

Como não podemos projetar nosso imaginário em personagens e cenas “positivos”, a imaginação é obrigada a buscar saídas – ou sair do cinema. Para mim, aquele momento coube trazer uma referência sobre a minha própria fobia. E qual seria a minha fobia? Durante a projeção, senti que poderia ser a fobia social. Como toda fobia ela esconde/substitui algo que você precisa resolver e que se alimenta com a angústia. De onde viria esta minha fobia?

Assisti ao filme ainda sob o impacto de um assalto que sofri na noite anterior.

Depois de assistir ao filme “Anabazys”, de Paloma Rocha e Joel Pizzini saio do cinema Unibanco/Glauber Rocha, cerca de 22h30min, deixo para trás o coquetel em homenagem aos 70 anos de Glauber Rocha e me perco só na noite andando por minha cidade. Nunca havia sido vítima de um assalto à mão armada. Vim morar em Salvador em 1976. Andávamos nas ruas de madrugada cantando sem medo, românticos e inocentes.

Mesmo dinamizado pela energia livre e libertadora do imaginário audiovisual glauberiano, a fobia social me expôs à noite infernal de quarta-feira.

Ao invés de tomar um táxi para casa, resolvo pegar um ônibus na praça da Piedade. Depois do Mosteiro de São Bento avisto um indivíduo sem camisa, com um saco de coleta seletiva de lixo. É um disfarce. Atrás dele vem um outro sem nada nas mãos. Aproximam-se de mim. O primeiro, negro, pede uma grana. Diz que dei um real pra ele dias atrás. É possível. Avança sobre mim e me agarra. Eu peço para ele não fazer aquilo. O outro, branco, corre e busca a grana nos meus bolsos. Tento conversar com o rapaz que segura as minhas mãos. Está muito louco. A calça apertada retarda a operação de um, o outro ameaça me matar. Neste momento percebo o caco de garrafa próximo ao meu pescoço. O celular e o dinheiro são, enfim, retirados. Eles saem correndo.

Fico desolado. Entro num estado de idiotia, incapaz de estar totalmente lúcido para compreender os sentidos e toda a emoção daquele acontecimento, dos meus sentimentos diante de um crime que envolve um embate corporal. Sai sangue de um corte no polegar da mão esquerda. A primeira vez que estive tão fortemente dentro de uma situação violenta, contava com cerca de sete anos de idade, na vila de São Paulinho, distrito de Itamaraju.

Estava com o meu pai na praça e vi um assassinato: Alumínio veio devagar desceu tranqüilo a ladeira da igrejinha, atravessou toda a praça, encontrou a sua vítima e nela cravou uma faca, na esquina da praça, defronte do bar e mercearia do povoado, de onde a pessoa havia acabado de sair. Alumínio voltou andando pelo mesmo lugar de onde veio.
Os objetos espalhados no chão, o corpo e o sangue, o espanto e o horror de uma criança do mato que nada sabia da vida e nunca tinha ouvido falar da morte. As cenas que vi atormentaram o meu ser. Meu pai pediu que esquecesse aquilo. Era impossível entender o que ocorreu. Esqueci. Até que um dia voltei a lembrar das cenas, adulto, numa sessão de psicanálise. Recordo, sobretudo, de duas cenas. Um plano geral visto da metade lateral da praça e de onde vi Alumínio deslocando-se pela rua de cima; e lembro do detalhe do corpo no chão, os objetos espalhados, o sangue. Não sei como esqueci dessas cenas por tanto tempo.

Imediatamente depois do assalto, aparecem dois veículos da guarda municipal, peço para pararem, digo a eles que acabei de ser roubado, assaltado, eles pedem uma descrição dos caras, dou alguns traços e saem em disparada. Saio andando em direção ao Relógio, um transeunte se oferece para me acompanhar até a Lapa, vou, mas vacilo, aparece um policial próximo ao Relógio. Digo a ele o que aconteceu e que eu preciso ir para casa, mas não sobrou um centavo. Ele sugere que procure o policial do posto da Lapa.

O rapaz não me esperou e pra lá vou, aturdido.

O policial está sozinho no posto. Repito pra ele a história, o dedo sangrando, preciso de um ônibus. Da Lapa não sai ônibus para a Federação. Busco uma saída, procuro proteção através de um representante do estado, buscando o pai na mais absoluta fragilidade. Parte daquele sentimento que tive quando criança retorna.

Um carro estaciona, dele descem o guarda da prefeitura e o soldado do Relógio.
Pegaram os caras. Desceram correndo a rua do Paraíso, entraram no Largo da Barroquinha e se bateram pela frente com três viaturas da PM e vários policiais. Vou recuperar o meu celular e o dinheiro. Entro na viatura da guarda municipal e vamos para a Barroquinha.

Com toda a urgência o carro corre em direção ao Largo.

Enquanto nos deslocamos converso com os guardas sobre a minha inconformidade com a situação e com a miséria social em que vivem indivíduos como aqueles jovens que me assaltaram. Não entendi que a perspectiva do sistema policial é outra. Eles estavam diante de uma situação de flagrante delito e o registro disso implica em aumento de salário.
A demanda é fazer o registro da ocorrência do crime numa delegacia. Isto gera ganhos financeiros para o delegado (não sei se para todo o sistema policial e prisional). Chegamos a Barroquinha, a cena militarizada, o posto, três viaturas, vários pms, os dois rapazes na gaiola de uma viatura. Um soldado me mostra o celular, pergunta se é o meu, reconheço o celular, e quanto ao dinheiro está na mão de um outro soldado, a metade do que foi roubado.

Informados disso, os soldados agridem os rapazes, com tapas e um deles é submetido à humilhação de tirar a roupa para ver se havia escondido o restante do dinheiro (cerca de R$ 150,00) em alguma parte do corpo. Digo aos policiais que não quero ir à delegacia. Um deles me leva ao módulo, pega os meus dados e diz que eu posso ir embora, que o registro do flagrante junto ao delegado só ocorreria se eu quisesse prestar a queixa. Ele diz aos pms e aos guardas que eu não quero ir à delegacia.

– Se ficarem soltos irão roubar outras pessoas e poderão matar alguém.
É um argumento forte, convincente. Eu vi a ferocidade e decisão do rapaz. Se for necessário, ele mata. E vi também a ferocidade da polícia, que também mata, que ofende, maltrata e pensei no sistema prisional, que deforma e ajuda a organizar o crime. Apanham e saem mais especializados no crime, talvez se vinculem a alguma quadrilha, etc
– Eu posso dar umas porradas neles e deixar em outro lugar, no Aquidaban, por exemplo, disse o pm.
– Eles têm que sair de circulação, se ficarem nas ruas continuarão a fazer a mesma coisa com outras pessoas. É verdade. Onde está a justiça?

Aturdido com a noite que pareceu um filme de horror, quando a minha fobia social foi exposta às vísceras da sociedade, encontro no jornal A Tarde da quinta-feira (dia 27) uma entrevista com a educadora Yara Dulce Bandeira de Ataíde. Ela pesquisou a história de vida de 150 adolescentes que viviam nas ruas, em estado de risco social – e concluiu que o estado de abandono dessas crianças levou-as ao roubo, tráfico e uso de drogas. A maioria tem pais violentos, drogados, criminosos. É o círculo vicioso da miséria. Os garotos tiveram infância muito parecida com as dos pais. Na mesma edição do jornal leio artigo do psicanalista Contardo Calligaris comentando decisão do STF sobre 14 casos em que a alta corte considerou “insignificantes” os crimes cometidos, pois aquelas pessoas roubaram bagatelas motivados por “extrema carência material”.

Está posta em discussão a justiça moral, para além da letra da lei.
Resta saber se o roubo para comprar crack pode ser caracterizado como “motivado por extrema carência material”.

Chegamos à delegacia dos Barris. O delegado não estava de plantão. A ocorrência foi registrada por um funcionário. Quis ir embora, o funcionário disse que teria que esperar. Disse que iria ligar para um advogado, ele pediu que não ligasse. Liguei para um amigo que é advogado. O telefone estava desligado. Fiquei esperando com mais seis guardas municipais por cerca de meia hora. Poderia ter ligado para algum amigo que tem contatos, mas fiquei em estado de choque, um torpor dominava tudo.

Ao invés de sair daquele ambiente e acabar com aquela história, acabei ficando. Disseram que havia um delegado na terceira, em Dendezeiros. Falei das vítimas que apodrecem nas prisões e dos banqueiros que ninguém prende, que são os ladrões mais perigosos. O delegado diz que está fazendo o seu trabalho. Recusa o registro feito nos Barris, o registro é seu, só assim ganhará a gratificação.

Respondo às mesmas perguntas novamente.

Estado de choque. Perco o apetite, fico depressivo, triste, estranho ... Talvez esse tenha sido o estado em que fiquei quando vi o assassinato. Sentimento de desamparo, solidão, estranhamento.

A auto-estima fica tremendamente baixa. A criança desamparada, apavorada ... o adulto precariamente preparado para a saudável convivência social, essa é a falta que gera a fobia social sempre que me aproximo de situações que tendem a fazer retornar tais sentimentos.

Na quinta página, no fim do texto, espero ter chegado ao xis da questão. Como superar esta tendência à afasia, ao melindre diante do menor desconforto nos relacionamentos, como conviver, fazer laço social, construir ...

6 comentários:

bahiaflaneur disse...

bom de ler seu relato sobre assalto sofrido. relato completo. terrivel. tambem bom de transcrever fala dos pm.... !!!!

de outro lado, escriverei um outro dia sobre j.-c. bernardet no meu proprio blog. Nao achei a atitude de ele legal, ate com desgraça. também vi mais uma vez o nivel médio da plateia : verdade que não da para trocar ideas com o tipo de pessoas falando aquele dia.
eu, saindo mais uma vez, vendo que para falar de verdade sobre cinema na bahia comn gente informado, é tarefa complicadissima...
cordialment
alex
bahiaflaneur

http://www.bahiaflaneur.net/blog

Josias Pires disse...

sou um fã de Jean-Claude Bernadet, o livro dele "Cineastas e Imagens do Povo", em 2a. edição, é maravilhoso. É uma inteligência instigante e provocativa. Acho que ele não foi bem entendido no debate daquela quinta-feira.

abraço,
Josias

Jadson disse...

Tô por fora dessa coisa de cinema, nem nunca ouvi falar do Jean-Claude Bernadet (desculpe a ignorância), mas o relato e digressões feitos pelo Josias estão muito bem. Muita lucidez, companheiro. Manter a sensibilidade social acesa, mesmo sofrendo uma violência, é admirável. Parabéns, espero que se recupere do trauma. Apesar dos pesares, temos que ir em frente.

Josias Pires disse...

Jadson, agradeço à sua expressão de solidariedade. O meu desejo é exatamete esse: superar um trauma que vem de longe e que se reacendeu diante da situação nova que vivi. Vamos em frente, há muito o que fazer e devemos dar a nossa contribuição ...

rac disse...

Realmente traumatizante.
Mas só te coloca a par da vida real.
Um dia teremos uma consciência sustentável.
Parabéns pela reflexão.
Sobre o filme vou aproveitar a indicação.

Josias Pires disse...

Uma consciência sustentável.
a sustentabilidade humana - é o que está em jogo agora. O artigo de Ontem (dia 16/03) o Contardo Calligaris escreveu sobre as "Lembranças traumáticas" - um texto simplesmente incrível, terapêutico, eu diria. E acentua um aspecto que retive e refleti um pouco mais, ele diz: quanto mais as lembranças dão conta das sensações vividas no momento traumático, revistas as cenas de horror, as lembranças podem chegar a cenas e sensações nas quais você não é vítima, não se vitimiza.