sábado, 18 de abril de 2009

NA MIRA

Josias Pires

O Ministério Público deu-nos mais um exemplo da sua relevância para a causa da justiça em nosso país, ao suspender a veiculação do programa “Na Mira”, da TV Aratu, e buscar que os diretores da tv e equipe do programa encontrem uma linguagem que respeite os “direitos e garantias individuais fundamentais da pessoa humana”, que deixem de fomentar a “barbárie explicitamente espetacularizada”.

Ante a espetacularização da violência e da miséria humanas esfarela-se a idéia de que a sociedade constitui-se por um contrato, um pacto social baseado no respeito mútuo entre as pessoas, na justiça social, liberdade individual, oportunidades iguais para todos. Sociedade que se obtém por meio da satisfação de necessidades básicas, englobadas no “pacote de segurança” de que fala a secretária Marília Muricy, em artigo recente publicado n’A Tarde: habitação, saúde, saneamento, lazer, cultura, arte ...

Estamos longe de ser uma sociedade justa e saudável. O que vemos é emergir nas cidades, nessas grandes concentrações que potencializam as virtudes e defeitos dos homens, a resposta violenta dos desterrados e excluídos à violência aterradora das elites. O homem é o lobo do homem, dizia Hobbes. Ainda estamos criando a humanidade, explica Milton Santos. O extermínio e a escravidão de centenas de milhares de africanos e indígenas do litoral ...

Por muito tempo a violência extremada, em massa, era privativo das elites políticas e econômicas, que se valiam, inclusive, do uso de forças armadas do estado para reprimir revoltas ocasionais. Aos descendentes dos excluídos de sempre, que vivem em condições cada vez mais precárias, parece nada restar. Afinal, para um jovem sem perspectivas positivas virar bandido é como trocar de lado numa rua.

A exclusão social exclui simultaneamente a possibilidade da plena cidadania. Estamos na encruzilhada. Para sermos todos cidadãos plenos é preciso construir a sociedade justa e saudável, reduzindo progressivamente as desigualdades e as injustiças sociais, ampliando cada vez mais a distribuição de renda, a educação de qualidade, a saúde, habitação, saneamento, melhoria real da qualidade de vida. Sustentar uma guerra permanente para prender, humilhar e matar milhares de jovens da periferia é a insanidade transfigurada em política pública. A eliminação física como política implica na perpetuação da violência e, no limite, o desperdício de recursos, energia que poderia ser utilizada para salvar talentos potenciais.

Recomendo aos editores e apresentadores de programas como “Na Mira” que vejam um filme angustiante, “Táxi para a escuridão” (de Alex Gibney, documentário, EUA, 2007), que revela a entranha cruel e desumana da violência e da tortura em prisões no Afeganistão (Al-Graib) e em Guatanamo. A humilhação violenta de um ser humano pelo outro só irá espalhar mais desconfiança, ódio e mortes entre os homens.

Quando cai o muro de Wall Street é hora de refazer o edifício humano. O sentimento em favor da constituição de uma sociedade justa e saudável precisa disseminar-se cada vez mais pela ação militante de muitos. E por em debate a ação cultural transformadora, que põe em questão essa TV que desvia o olhar do cidadão. Ao invés de fazer jornalismo investigativo para ajudar a revelar quem são os cabeças do crime organizado, ajudar a desbaratar as quadrilhas e reduzir a violência em todos os níveis, prefere focar as lentes e os olhos da cidade sobre os que estão diante das balas da polícia ou de outros bandidos. O crime organizado, obsceno, atua na clandestinidade longe da luz e das câmaras.

É certo que tais programas de TV mobilizam a atenção popular, por vários motivos. Desde o início os homens sempre tiveram fascínio pelo mistério da morte, do sexo e da violência. É mais antigo do que rascunho da Biblia a atração pelo mórbido. Muitas pessoas identificam-se com aquelas imagens e sons aparentemente porque sentem-nas muito próximas do seu cotidiano. Mas devemos superar o entorpecimento e levantarmos a voz para repelir a intolerável violência entre os seres humanos. As políticas públicas precisam ser recicladas.

Cabe a todos nós e ao Ministério Público acompanhar este processo de aperfeiçoamento das relações humanas e da busca de uma televisão cidadã.

6 comentários:

Joana D'Arck disse...

Grande Josias! Sempre abordando a questão social com tanta sensibilidade. Esses programas de TV que exploram a violência e a dor das pessoas são abomináveis. Tudo em nome do Ibope, da audiência fácil dos que parecem procurar conforto para os próprios sofrimentos nos sofrimento alheio. Não vi ainda (e nem quero ver) esses programas, mas imagino o nível de exploração pela repercussão na imprensa e ação do MP.

Joana D'Arck disse...

(Correção)
Grande Josias! Sempre abordando a questão social com tanta sensibilidade. Esses programas de TV que exploram a violência e a dor das pessoas são abomináveis. Tudo em nome do Ibope, da audiência fácil dos que parecem procurar conforto para os próprios sofrimentos no sofrimento alheio. Não vi ainda (e nem quero ver) esses programas, mas imagino o nível de exploração pela repercussão na imprensa e ação do MP.

Jadson disse...

Companheiros, não conheço bem o Josias, mas aprecio sua visão social (não falo no caso de cinema, tema ao qual ele é ligado, pois estou por fora da matéria). Agora mesmo, seu entendimento sobre esses programas repulsivos da TV baiana é muito oportuno. Quem tem me falado sobre isso, ultimamente, é a colega Liliana Peixinho, dedicada especialmente à defesa do meio ambiente, mas, pelo visto, empenhada também contra a poluição midiática (blogs amigodomeioambiente e falandonalata).Recebi, através dela, material da suspensão temporária do “Na Mira”, com mensagens do Sindicato dos Jornalistas da Bahia e de vários colegas baianos. Ela fala ainda da atuação do deputado Yulo Oiticica no particular.
Segundo o noticiário que recebi, a suspensão foi determinada pelo juiz Manuel Bahia, atendendo ação do Ministério Público, através dos promotores Almiro Sena e Isabel Adelaide Moura. A suspensão é restrita ao “Na Mira”, mas a sentença (liminar) faz referência também à baixaria de programas como “Que venha o povo” e “Se liga Bocão” (o do nosso Varela não estaria também neste meio?). Na sentença o juiz fala em “quadros chocantes, pavorosos, tétricos, macabros e dantescos”, adjetivos que mostram a justa indignação de sua excelência. Sempre falo mal da Justiça (instituição que, depois da grande mídia, é a que tem a menor credibilidade, conforme minha opinião), porém, neste caso, vamos aplaudir.
Duas observações telegráficas:
1 – Tenho visto essa praga em todas as cidades por onde passo e acho que todos conhecem a baixaria de emissores “nacionais” - Rio e São Paulo. Há iniciativas contra, mas os resultados até agora são pequenos.
2 – TV e rádio são concessões de serviço público, então a sociedade, a comunidade têm o direito e o dever de exigir uma programação que defenda o interesse público.
Além da exploração nojenta das desgraças que atingem, sobretudo, as vítimas da exclusão social, tem uma faceta que me intriga. É o fato de políticos, autoridades, às vezes com histórico de vida respeitável, aceitarem participar de programas dessa espécie. Já vi, em Salvador, deputados serem achincalhados na tela de TV. E eles gaguejam nas respostas e seguem como se não houvesse nada demais. Não se respeitam ou são reféns da chantagem? Ou, cinicamente, acham que o jogo é esse mesmo e tem de ser jogado?

Josias Pires disse...

Jadson e todo(a)s,

os políticos fogem da crítica à TV como o diabo foge da cruz. Ninguém quer meter a mão nessa cumbuca. De fato, a impunidade brasileira e a larga prática de destruir reputações, como gosta de fazer alguns veículos de comunicação, levam os políticos a ficar com as barbas de molho. Contudo, isto mudará quando a sociedade debater o assunto e ganhar apoio para uma crítica contundente ao abuso na TV. Ou seja, como os políticos ficam quietos nós temos que levantar o debate e fustigar a imprensa a fazer esse debate. Sei que dada a extensão do abuso - vc se refere a tvs de todo o país - parece utopia estar aqui falando no controle disso. Mas temos certeza de que isto é indispensável. Artigos nos veículos de comunicações, nos blogs, sites, etc. Na Argentina o governo divulgou o ante-projeto de uma nova lei geral das comunicações, buscando democratizá-las. Cadê o debate da democratização da comunicação no Brasil? Vai acontecer uma conferência nacional de comunicação. Cadê o debate? Qual é a proposta do governo? Jornalistas, radialistas, cronistas, colunistas, blogueiros, etc. todos os que atuam nos meios de comunicação, podem cumprir papel importante para fazer avançar o debate das questões públicas no Brasil, muitas delas negligenciadas pelos políticos.

Josias Pires disse...

Bem ... falei em certeza ... o que pode ser visto como uma temeridade. Mas é fato que o debate público, quando consegue ser realizado, impacta positivamente na melhoria dos relacionamentos intra-pessoais e, por extensão, poderá contribuir para a melhoria do quadro social.

Mônica Bichara disse...

Perfeito, Josias. Esses programas sangrentos são mesmo um absurdo e o horário é o pior possível. Conheço uma criatura que tá alucinada com a babá, p/q ela descobriu que o filho, de 7 anos, estava assistindo essas barbaridades todo dia p/q a mulher gosta desse tipo de programa. Esse Na Mira, então, é uma indecência. E se TV é concessão de serviço público tem mais é que ser fiscalizada mesmo, p/q o que está acontecendo é um desserviço ao público. Não se trata de censura, mas de bom senso. E que ninguém venha argumentar que basta mudar de canal, pois o horário é mais do que impróprio, pois na maioria das casas pais e mães estão na rua trabalhando. Na minha casa eu proibi, mas ninguém me garante que um dia ou outro essa proibição não esteja sendo quebrada.
Hoje eu soube de um caso que a família vai processar o programa p/q exibiu imagens da uma mulher, que passou mal na rua, morrendo na porta do HGE. As equipes desses programas dão plantões nas portas do HGE, NIna, hospitais públicos..., esperando como urubus na carniça por uma imagem sensacionalista, do tipo quanto mais sangue e choro melhor. Imagine você assistir pela TV um amigo ou parente morrendo ou apanhando e não poder fazer nada. É uma polêmica que precisa mesmo ser discutida com seriedade. Parabéns, Josias.