quinta-feira, 9 de outubro de 2008

No Brasil, "mãos limpas" vira espetáculo

Ludmilla Duarte
É mesmo engraçada esta republiqueta das bananas. O que deveria ter sido uma espetacular ação policial, com a prisão mais que oportuna de um grupo responsável por crimes financeiros e fiscais de gigantesca monta (quase uma “Mãos Limpas” brasileira), transformou-se num circo onde os principais protagonistas são algumas das figuras mais representativas do Estado, como o presidente da mais alta Câmara Judiciária do país, e, ele mesmo, o presidente da República. Last, but not least, estão no picadeiro coadjuvantes de primeiro escalão, como o ministro da Defesa, Nelson Jobim, da Justiça, Tarso Genro, e até um sisudo general, Jorge Félix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência.

No roteiro, direção e apresentação do espetáculo, mais uma vez, nossa imprensa marrom. Que começou a escrever o enredo a partir das transcrições de um suposto grampo, veja só, supostamente executado pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) – mas que bem pode ter sido plantado por um conhecido araponga, mui amigo da marronzada - e que, mesmo sem prova nenhuma, serviu para que nosso presidente defenestrasse da direção-geral da ABIN um dos policias mais sérios que o Brasil já conheceu, o delegado concursado da Polícia Federal Paulo Lacerda.
Mas, como todo enredo, desde o mais sofisticado até o mais pastelão, este não surgiu do nada. O que provocou a brainstorm desses geniais roteiristas da imprensa foram as sete mil minuciosas páginas resultantes da investigação de outro bastião da escassa reserva moral do país, o delegado Protógenes Queiroz, que teve a ousadia (imaginem só!) de algemar a troupe do banqueiro Daniel Dantas (tinha que ser baiano, meu Deus?), há anos encarregado de proteger, lavar e multiplicar as finanças de figuras das mais proeminentes do país, desde empresários e doleiros a políticos, lobistas e outros bichos.

Até tu, Coriolano??? Mandaram Queiroz para um curso, é claro, prá ver se aprende a respeitar otoridade. E por que mesmo? Ah, por ter solicitado e obtido, via Lacerda, seu ex-chefe na PF, o apoio da ABIN nas investigações, já que o atual diretor-geral da PF inexplicavelmente (?) havia esvaziado de recurso humano as investigações ao nível do impraticável.

Em um país de respeito, a imprensa estaria se perguntando por que diabos a direção da PF boicotou a tal Satiagraha (que significa resistência pacífica e silenciosa; PF também é cultura); por que cargas d’água afastaram o delegado; e, mais ainda, por quê raios o presidente do Supremo Tribunal Federal libertou por duas vezes, em menos de quarenta e oito horas, o homem investigado em duas operações da PF (alguém lembra da Chacal?) e contra quem pesam graves e sólidos indícios de prática de crimes de evasão de divisas, formação de quadrilha e corrupção, somente para citar alguns.

É claro, enquanto os cães ladram, a caravana passa. E os latidos vão no sentido de esclarecer se a ABIN tem ou não tem a tal maleta 007 (Bond, James Bond) capaz de grampear ligações telefônicas, já que um convescote do ministro do STF com um senador da República foi grampeado e depois divulgado pela marrom-chefe, detonando uma crise institucional que colocou o Executivo de joelhos diante do Judiciário, e a Nação estupefacta diante da incrível cara-de-pau do seu ministro da Defesa.

Para não perder a viagem, o ministro do STF baixou uma resolução que obriga os juízes a prestarem contas ao Conselho Nacional de Justiça (presidido por quem? Bingo! Pelo próprio!) de toda quebra de sigilo telefônico autorizada pelos magistrados, e ainda o número de protocolo registrado nas companhias telefônicas. Considerando que o CNJ é uma entidade composta por membros do Poder Público e da sociedade civil, inclusive advogados criminalistas, a resolução praticamente equivale a colocar os lobos para tomarem conta do galinheiro. E, de quebra, joga o bebê fora junto com a água da bacia, já que grampo neste caso, se houve, foi ilegal; os grampos legais, autorizados por juízes e realizados com acompanhamento do Ministério Público, como reza a Constituição, em momento algum estiveram sob suspeição. The show must go on.

2 comentários:

Mônica Bichara disse...

Ludmilla, que bom ver (ler) você aqui nesse espaço! Parabéns pelo texto.
Também quero saber o que a "marronzada" vai dizer agora, que está ficando clara a armação. O grampo, se houve, não partiu da Abin nem da PF, como ficou provado. Enquanto isso, Daniel Dantas (amei o tinha que ser baiano, meu Deus?) faz o que quer e bem entende, protegido por Gilmar Mendes e sua troupe. Até quando?

Jadson disse...

Muito interessante a avaliação de Ludmilla Duarte (é filha do saudoso jornalista Sóstenes Gentil, da Tribuna da Bahia, morto prematuramente em acidente de carro, certo?). Esse festival de sacanagens/armações da nossa grande imprensa (“mídia gorda”, no dizer de Mylton Severiano, de Caros Amigos) em que se transformou a ação da Polícia Federal tentando pegar o todo-poderoso Daniel Dantas. A discussão sobre as acusações ao banqueiro virou um jogo mal-cheiroso envolvendo grampos e vazamento de informações. Aplausos à linha editorial de Carta Capital, do valente Mino Carta, que há anos denuncia a atuação de Dantas, é só lembrar as inúmeras matérias assinadas por Bob Fernandes. É de chocar, você está certa, a desenvoltura com que figuras do tipo Nelson Jobim e Gilmar Mendes transitam por nossa mídia.
Só um reparo: apesar dos pesares, eu não chamaria mais o Brasil de republiqueta das bananas, creio que estamos dando passos – tímidos, é verdade – rumo a uma postura mais soberana. São passos que vêm dando não só o governo brasileiro, mas principalmente o de países sulamericanos como Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina, no sentido de maior integração regional e enfrentamento à sanha neocolonial do império norte-americano (governos ajudados e/ou empurrados pela mobilização popular). Podemos incluir também a promessa que representa o novo governo do Paraguai e a atuação, bem mais tímida, de Uruguai e Chile. Lembro ainda o combativo movimento popular no Peru.
Mas, voltando ao Brasil, não dá para obscurecer episódios como a saída do delegado Lacerda da Abin e a de seu colega Queiroz da direção da operação da PF. Penso que você falou bem, são fatos sobre as quais o governo brasileiro continua devendo uma explicação convincente.
Sobre a Satiagraha, matéria de Marcos Zibordi, da Caros Amigos do mês passado, fala sobre a participação da grande imprensa (e de outras instituições, claro).
Aproveito o ensejo para destacar uma materinha de A Tarde, de hoje, dia 12, “Quase todo policial faz segurança clandestina”, da repórter Helga Cirino (está junto com “Metade dos PMS mortos respondia a processos”). Creio que temos de dar voz aos que não têm voz na nossa mídia, é quando a realidade tende a ser mostrada, porque o oficialismo só tende a engabelar os leitores.