sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Gomorra é aqui?

Depois de ler o livro Gomorra, escrito em 2006 por um jovem italiano, Roberto Saviano, que conta a "história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana", mudei o meu olhar para a onda de violência que está comendo solto nas periferias de Salvador – e aqui periferia é sinônimo de lugar à margem dos benefícios do desenvolvimento.

Suponho que ninguém acredita na história de que a prisão dos integrantes das quatro supostas principais famílias de traficantes soteropolitanos significa que o tráfico terá sido liquidado. Hoje (dia 10/01) os jornais trazem a notícia da prisão 14 pessoas de uma dessas famílias. Certamente é um feito que demonstra investigação, acompanhamento da situação policial da cidade. Mas quem pode garantir que a prisão dos membros das outras três famílias porá fim ao tráfico de drogas em Salvador?

Na Itália criaram-se as Procuradorias Antimáfia, como a de Nápoles, que revelam a dinâmica do poder mafioso e a natureza dos conflitos sangrentos entre as diversas famílias. Muitas vezes crimes parecidos com os que ocorrem aqui. Urge ampliar a ação das nossas procuradorias para aprofundar o conhecimento circunstanciado das organizações criminosas, único meio de sustentar a sua desarticulação.

Saviano acompanhou a ação da procuradoria e da polícia – inclusive com um aparelho de rádio sintonizado na freqüência policial. Quando a polícia era informada de algum homicídio ele sabia na mesma hora e, por diversas vezes, chegou à cena do crime antes dos policiais.

Nascido em Nápoles e, desde muito cedo, curioso para desvendar aquela realidade, tornou-se profundo conhecedor do submundo miserável onde vive a maioria da população da periferia da cidade.

Gomorra é uma grande reportagem de sabor ensaístico, de pegada antropológica, literatura que sintetiza experiências pessoais durante a realização da pesquisa que vem desde, pode-se dizer, os 13 anos de idade (1992), quando, indo para a escola com os colegas, Roberto viu um homem assassinado, varado de balas, dentro de um automóvel, com os pés no assento da cabeça da poltrona do carro. Os petardos produziram uma cambalhota no indivíduo e uma ejaculação involuntária.

Por trás de tudo está o "Sistema de Secondigliano", constituído por famílias numerosas que se sucedem no poder em Nápoles e em toda a Campânia.

Controlam o tráfico internacional de drogas e armas, associado à enorme influência sobre portos, construção civil e alta-costura, produzida em pequenas cidades por dezena de pequenas fábricas, que usam mão-de-obra qualificada, porém intensamente explorada como no início da revolução industrial. Os clãs controlam os transportes e a venda das peças - é o "Sistema que alimentava o grande mercado internacional da moda, o enorme arquipélago da elegância italiana".

A partir do norte de Nápoles grupos mafiosos articulam a sua influência global. Quando caiu o muro de Berlim, a máfia estava articulada com os governos da era socialista, de quem compraram armas e traficaram para grupos diversos em todo o mundo. A máfia montou uma cadeia de lojas e armazéns de roupas em todos os continentes. Adquiriu uma estrutura federal, internacional e flexível de negócios para a lavagem de dinheiro. São muitos os campos de atuação – alguns inimagináveis – como o transporte e disposição final de lixo tóxico.

Saviano narra dezenas de histórias impressionantes, como a do padre assassinado pela máfia porque fazia pregações e campanhas contra o crime. Um amigo do padre escreveu um texto e o levou no bolso para o enterro, porém o texto não foi lido. Parte dele foi publicado por Saviano. É neste texto que o religioso compara a região do Secondigliano à Gomorra.

A ilegalidade e clandestinidade escondem de nós fatos surpreendentes e estarrecedores sobre as relações íntimas e perigosas de homens e mulheres das poderosas famílias mafiosas. Saviano nos leva ao coração das trevas, para um lugar onde os fluxos financeiros convivem com os maiores índices de assassinato da Europa. Uma máquina terrorista, que domina pelo medo, armas em punho e que atrai milhares de jovens marginalizados, que se tornam mão-de-obra delinqüente à disposição dos mafiosos.

O livro já vendeu mais de dois milhões de exemplares em todo o mundo e foi adaptado para o cinema por quatro roteiristas e dirigido por Matteo Garrone. Foi o Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes (2008). Está sendo exibido em Salvador, no Espaço Unibanco.

O livro causa forte impressão. A região onde atua o Sistema, na Itália, é chamada de Terceiro Mundo. É como aqui nas nossas periferias.
Lembrei do livro ao ler no jornal A Tarde a entrevista do secretário César Nunes, que se diz Secretário de Polícia e não de Segurança Pública – uma boa provocação para o indispensável debate sobre as nossas vidas. E um sinalizador da distância que estamos daquilo que é necessário para o combate eficaz às organizações criminosas. O próprio secretário admite que este combate se faz com políticas sociais. Inclusão Social, Distribuição de Renda, Justiça.

Mas será que nos basta ter apenas um secretário de Polícia? A frase mais debatida da entrevista foi aquela que enuncia a disposição do secretário de "ir pra cima dos bandidos" e produzir baixas no campo inimigo. Uma tática de guerra, evidentemente. Guerra de extermínio, se preciso for. O secretário não usa estas palavras, mas parece ser a intenção da fala.

Ocorre que estamos vivendo a era da queda do muro de Wall Street. É hora de mudanças profundas de paradigmas. É hora da onça beber água. Ou poderemos virar também terra de Gomorra. O secretário diz que o aumento do número de assassinatos deve-se ao acirramento dos conflitos internos dos diversos grupos de traficantes: "uma guerra intestina que está havendo entre o terceiro e quarto escalões dessa atividade ilícita", diz.

Acredito que devamos buscar entender o que está efetivamente acontecendo. Faltam-nos informações. A sociedade só sabe que é guerra do tráfico e só aparece quem está na frente das armas. Mas quem está por trás de tudo isso? O secretário admite que é preciso "haver uma investigação competente, policiais capacitados" e inteligência policial. De fato.Há muito o que ser descoberto, revelado. César Nunes explica que "a prisão dos líderes do tráfico", ou dos líderes atuais, poder-se-ia referir – também chamados por ele de "gerentes" – levou à intensificação da violência, agora comandada por jovens dos tais "terceiro e quarto escalões".

A fala do secretário poderia nos indicar a existência de escalões superiores que estariam atuando – o primeiro e o segundo escalões - mesmo com a prisão dos "gerentes". Ele nega, porém, essa hipótese e afirma não acreditar que haja alguém mais poderoso por trás dos traficantes locais.

Aí me parece útil e mesmo indispensável situar a questão no quadro mais amplo. Se o tráfico de drogas e armas é comandado por máfias americanas, européias e asiáticas, como pode o tráfico de drogas e armas de Salvador ser completamente autônomo das injunções internacionais em plena era da globalização financeira?

Parece impossível desbaratar as diversas máfias que atuam em todo lugar. Esta é uma questão glocal. Precisamos ter na Bahia, no Brasil, procuradorias antimáfias, que ajudem a sociedade brasileira – e baiana - a desvendar a natureza e a profundidade das organizações criminosas.

Jamais resolveremos a questão da violência fazendo guerra de extermínio de jovens marginalizados da periferia de Salvador.

O momento exige soluções ousadas. O tráfico de drogas só terá fim, evidentemente, quando a sociedade compreender que a legalização da atividade permitirá a regulação estatal adequada, além de facilitar, inclusive, o controle público.

Ao lado disso é preciso investimentos maciços em educação, cultura, geração de iniciativas criativas, produtivas, sensíveis.

A violência parece uma hidra cujas cabeças multiplicam-se ao serem decepadas. Neste caso uma hidra de dimensões planetária.

A guerra é outra: é por Distribuição e Geração de Renda, Inclusão Social, Justiça.

3 comentários:

Anônimo disse...

Josias

Tribunal de Justiça da Bahia reconhece Artista – funcionário


Recebi esta semana uma "Carta Aberta" sobre os "Editais de Apoio à Cultura", feita pela artista visual Maristela Ribeiro, de Feira de Santana. Ela explica que inscreveu um projeto para participação no XV Salão de Arte da Bahia/2008, que foi selecionado entre os quarenta finalistas para exposição entre mais de três mil e quinhentas obras inscritas.

"Embora artista experiente, com participação em inúmeros salões de arte e exposições, individuais e coletivas, no Brasil e em outros países, confesso que me senti gratificada, ao ver que entre tantos trabalhos, o produto do meu esforço intelectual tenha obtido o reconhecimento dos meus pares.

Entretanto, tive frustrado este conjunto de emoções ao tomar conhecimento, tardiamente, de que servidores públicos estaduais – o meu caso - "de qualquer categoria, natureza ou condição" estão impedidos de participar do Salão. Vale dizer que a minha surpresa advém do fato de ter participado de edições anteriores do Salão e nunca haver tomado conhecimento de semelhante impedimento, situação que justifica a minha desatenção no ato da inscrição.

Até o momento escapa à minha compreensão o objetivo desta restrição, que provavelmente emergiu dos meios jurídicos auxiliares do Estado. Ainda assim, e assumindo o risco de relatar uma obviedade, gostaria de chamar a atenção para o fato de que a Bahia conta com aproximadamente trezentos mil servidores - quantos destes artistas militantes ou aspirantes? -, uma população que repentina e injustamente se vê colocada à margem do evento artístico e cultural mais importante do Estado por um dispositivo que, na minha compreensão de cidadã, agride um princípio constitucional fundamental, qual seja o que estabelece que "Todos são iguais perante a lei":

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

... IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;"

Cabe ainda ressaltar que:

A minha condição de cidadã antecede a de Artista Visual, que por sua vez, precede a de Servidora Pública Estadual;

A opção pelo Serviço Público Estadual não deve representar um ônus para o cidadão, como o que impõe a referida cláusula 2ª do Edital para participação no Salão;

Não é justo que uma obra artística selecionada por mérito, seja impedida de alcançar o grande público;

Diante do exposto e mesmo considerando ampla e democrática – pelo menos como intenção manifesta - a atual política cultural do Estado, me senti motivada a contestar na justiça tal incoerência, através de Mandado de Segurança impetrado junto ao Tribunal de Justiça da Bahia, cuja concessão favorável garantiu a minha participação no evento. Ao fazê-lo, espero também ter provocado a ampliação do debate em torno dessa questão que cerceia direitos tão líquidos quanto elementares, de toda uma categoria que se vê excluída de participar de editais públicos estaduais.

Atenciosamente,

Maristela Ribeiro

Artista Visual

e-mail: maristelaribeiro3@hotmail.com

Fone: 75 – 99793479

Jadson disse...

Estou contigo, Josias, a guerra é por distribuição de renda, inclusão, justiça, e não contra os pobres e pretos da periferia, como ocorre não só em Salvador, sob a passividade da sociedade, incluindo a grande mídia.
Ao falar do poder da máfia, nunca é demais lembrar a perseguição que hoje sofre no Brasil o delegado Protógenes Queiroz, pelo atrevimento de ter prendido um banqueiro.
Bem, o companheiro mexe em feridas das quais muito se tem a dizer e contra as quais muito se tem a lutar.

Mônica Bichara disse...

Josias, a idéia das procuradorias antimáfias pode até dar certo, por ser uma forma de enfrentamento mais qualificado ao crime organizado. Mas o que o governo precisa fazer, urgentemente, é adotar medidas mais ousadas que façam realmente a diferença no combate ao crime, antes que a Bahia se transforme numa sucursal do Rio ou de São Paulo.
Concordo que qualquer estratégia de governo, qualquer política de segurança pública, só dará resultado positivo se incluir, como você disse, "investimentos maciços em educação, cultura, geração de iniciativas criativas, produtivas, sensíveis".